segunda-feira, dezembro 25, 2023

Antítese

A ti, que secretamente pensas em mim

E na minha poesia como algo menor

Lanço a antítese: existe apenas a poesia

O que pode ser menor ou maior

É o julgamento que dela fazes

Que é como um muro de ideias que ergues

Entre ela e o teu coração amedrontado


É fado de poeta cavar em seu íntimo

O signo mínimo que possa reintegrá-lo

Ao seu tempo e seus companheiros

Mas é claro que um poema é um esforço

Cujo torso delgado, suas costelas-metáforas

Seus ossos-oxímoros, sua pele-palavra

Terá de resistir à prova do tempo e dos olhares


Ao divagares, pois, sobre o valor do que escrevo

Pergunta-te a ti, primevo, se algo ali te serve

(Pois pode acontecer do poema não ser teu)

“A poesia pertence a quem precisa dela”, disse

O carteiro ao poeta Neruda naquele filme inesquecível

E um poema que te for esquecível é como

Um transeunte que cruzas na rua

Cujo olhar mal percebeste: ali segue um universo comunicante

Indo ao encontro de outros que, talvez

Precisem mais de seu olhar que tua distração pode dar conta


Por fim, aponta em ti mesmo tuas dificuldades

Caso tenhas a mesma coragem de quem escreve

E percebe que a vida, em suas tragédias e glórias - todas passageiras

Apenas passa por ti, também transeunte

Indiferente se a olhaste nos olhos

Ou apenas te afastaste, ignorante.

sexta-feira, dezembro 22, 2023

Brilho

meus olhos ardem

amargurados

pelo brilho

celular

 

alagadas

as pupilas

pululam

largadas ao

rútilo aço

cristalino 

que retine 


as órbitas 

comprimem-se

sem o lume

redimensionadas

no negrume

repousam do

açoite


custa crer

que a noite

de ontem

se ia com 

lamparina


no seu

desamparo

a retina

retorcida

feito a

ostra cítrica

range

no clangor

de pixels.


quarta-feira, abril 15, 2020

Vírus coroado





da janela do exílio
vejo o martírio lento da população
a dar de ombros, ou simplesmente
a não ter escolhas: é preciso trabalhar

suas panelas vazias recolhem
a água da única torneira comunitária
e aguardam o momento
de cozerem algo de comer
(não há tempo ou chance de bater
porque é preciso ter água)

de um palanque de privilégios
vejo o sacrilégio de outra parte da população
que mal vê o que de fato os infecta:
a sombra abjeta da abominação
em não perceberem-se parte
de sua própria cidade, de seu próprio povo

de um isolamento novo
(aquele que foi decretado, imposto pelo jugo)
os navegantes virtuais elegem
seu verdugo predileto, seu dileto inimigo
e põem-se voluntariamente
ao abrigo da tecnologia, sentindo falta
de como se isolavam antes

no país dos distantes
me vejo diante da morte iminente:
o egoísmo coletivo, primo do inconsciente
sobe ao cadafalso, o pescoço atado a laço
aguarda o salto no escuro mistério
da vida que a morte traz pelo braço.

quarta-feira, junho 07, 2017

Guamorto

à memória dos mortos pela milícia


só existe uma sina
permane
nte
no bairro onde moro

e nasci: a c
hacina
de gente, de
pobre
de preto, de pa
rdo
de qualquer desavisado
na esquina



sempre a mesma cena
deprimente
no barro, n
a piçarra
no asfalto quente: obscena
de frente, pelas
costas
súbita, alardeada
entre o toque de recolher
e a novena


só insiste, assassina
recorrent
e
porque há quem aplauda (e vote):
(n)o gatilho mu
do e encapuzado
(n)o disparo na madr
ugada
enquanto dormem
o sono dos justos

na latrina

terça-feira, março 21, 2017

Arvoreser


do menino
de cuja cabeça
brotam árvores
quando lê
não sei muito:

mas sei que livros
são feitos de árvores mortas
cuja vida reaparece
quando as palavras brotam
em suas folhas

sei que folhas
são comuns
a árvores e livros
e que falhas
são comuns
a homens livres

do menino
de cujos livros
brotam cabeças leves
quando escreve
sei este algo:

a vida é o jogo
entre plantar e colher
e em cada folha solta
estão árvores-livros
em silencioso alvoroço.

quarta-feira, janeiro 04, 2017

2016/2017


por vocês, que por mim passaram
anos de pedra e de vento
a conta dos acontecimentos ressoa
em cada folha que voa
sobre os olhos da criança que fui


porque esperei por cada um
com luz acesa e esperança
e o alimento dos sonhos
na chuva leve que cai
pelos ombros de janeiro
até o desabrochar dos dias 

inteiros

cordilheiras de horas erguidas
sobre as feridas curadas
na despedida e na chegada
em que te acolho
revolvido

como um feixe de terra
cerzido à mão, semeado
me entrego cultivado
aos cuidados do devir


a vocês, ponteiros de Cronos
grãos de areia escorreitos
ofereço o leito semovente
o diamante sem tempo
dos viajantes: prosseguir
a estrada é o rumo
viver é sempre chegar
e partir.

quarta-feira, julho 27, 2016

Bruxismo

                                                                            para Lou Reed

trincam-me os dentes à noite
rachando sob o peso dos sonhos

o seu mármore inquieto range

sob o firmamento calado

entre o ronco e o enfado

o estômago aflige o esôfago
num afago ácido de onda

demanda de si a barganha

da rinha cotidiana irresoluta

inflama a luta desigual

entre o possível e o improvável

rompe, do siso ao juízo,

o seu improvisado diamante

dentifrícios e antissépticos 

ardem sua fogueira deliberada.

trancam-me os dentes à chave
pra fora do corpo dormente:
lá dentro esbatem-se as palavras
como minúsculas serpentes sob a língua
(
na água escura da noite gemem
como as tábuas de um velho barco)

sob o arco abobadado, cravado 
de aftas e abcessos, assoma o recomeço
um acesso cauterizado pela dor

a arca corroída se abre em nervos

através do canal devastado

malgrado o dever involuntário

da moenda e guilhotina diárias
a arcada dentária enverga
sua moldura identitária no riso
ou na fúria que nela se imprime - 
ou reprime - num bruxismo insone.

Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.