quinta-feira, agosto 25, 2005

a pele

sempre escolho ficar aqui, onde há terra que piso
e onde sombra meu espanto, onde há ferida que
ronda o orgulho, erguido em paisagem dolorosa.

teimosamente encolho a rosa que se quer
desabrida e sem abrigo, à mercê de ser,
tão fulminante e bela, diamantes de minutos
sem subterfúgios, até que por si só ela
recolha seus encantos, e baixe a cabeça
lentamente, como quem morre satisfeito.

sempre embrulho meu próprio coração
em grossos papéis rudes de medo, e
volto a encarar, sem rosto, a chuva
que segue amolecendo tudo o que se
cobre, a lenta descoberta feita de
primaveras que irrompem em erupção.

a pele do que se esconde então arde
ainda que seja mouco o mundo,
ainda que manque a palavra desdita

sob a escrita dura do que seja tarde.

(escrita em dois atos, na contracapa do livro "aprendendo a viver", de clarice lispector... ainda não aprendi).

quarta-feira, agosto 17, 2005

a estrada

Houve esta noite, na semana passada, em que tive um sonho. Acordei e tinha uma imagem, que ficou reduzida à cinza de três palavras: estrada do esquecimento. Não sonhei com uma estrada, e nem ao menos me recordo de imagem alguma... mas tinha esta sensação, pobremente traduzida desta forma. Passados alguns dias, conversava com uma amiga que veio me visitar. Lia para ela trechos da conferência sobre o budismo, de Borges, e tive um insight: "caminha-se na estrada do esquecimento, e a cada passo, esquece-se, e isto é o conhecimento - saber é esquecer". Claro que lembrei imediatamente de Caeiro, e de uns escritos do Rubem Alves, mas sabia que ainda precisava escrever algo sobre. Então, no domingo, veio isto:


agora já sei sobre a estrada do esquecimento.
não um caminho que conduz a tal estado,
mas onde esquece-se ao trilhar.
esqueça a metáfora do vento que leva
lembranças, revolvendo-te os cabelos,
ou a imaginosa tez de vazio fabulário
que supões ser a carne desnuda da memória.
abandona histórias que ouviste do país
invisível, onde os espelhos mostram a ti
um rosto estrangeiro a cada visada.
reconhece apenas tua pisada, que se
renova a cada adiante alcançado
e ouve os recordos ruírem sem alarde
enquanto a tarde avança em rosa
e esquece do azul, devolvendo a noite.
recolhe-te à irrealidade do caminho
e faz teu ninho de pura pedra passageira.
ela ficará lá, muda testemunha, e tu segues.
eis o teu conhecimento: nada reter, enquanto
fluis. e teu poema escrito já não é mais teu.
a cada passo na estrada do esquecimento
mais saberás sobre nada, e nada vais
esperar do caminho, que na mesma
medida, te revelará tudo.

domingo, agosto 14, 2005

meu pai

meu pai vinha de lá das terras duras,
se chegava até mim, ainda menino
e dizia: “filho, amigos cabem
na palma de uma só mão.
um punhado de segredos
com que se pode contar”.


via meu pai descansar,
arranhando a minha mão na
aspereza de sua barba nascente,
ouvindo o gorjeio quente
de sua calma digestão.
parecia frágil então, deitado
co’a mão à testa, sorria
pelas arestas de sua engenharia.


dada hora, se erguia a cavalo
de batalha, o meu pai feito navalha
aparou-me as sobras, apontou-me
as cobras minúsculas camufladas
nas veredas do amor, e da solidão.


o meu pai foi pião, e rodopiou sozinho
construindo à roda um ninho onde pude
desembocar, amiúde, em meu caminho.

quarta-feira, agosto 10, 2005

Tenho publicado poemas, e recebido sinais. Uns refulgem cá, outros lá... não importa. Tenho feito de meu exílio um rescaldo donde dou-me a conhecer melhor o que tenho. Terminei hoje o grande livro de conferências de Borges, Sete Noites (Max Limonad), que recomendo com paixão. Navalha foi escrito sob tais fulgores, e compartilho então de uma de suas inesquecíveis luminescências, de um Borges octogenário e cego:

"Não apenas o escritor, mas todo homem deve se lembrar de que os fatos da vida são um instrumento. Todas as coisas que lhe são dadas têm um sentido, ainda mais no caso do artista; tudo o que lhe acontece - inclusive humilhações, mágoas e infortúnios - funciona como argila, como material que deve ser aproveitado para sua arte. Lembrei disso num poema, onde falo do antigo alimento dos heróis: a humilhação, a infelicidade, a contradição. Essas coisas nos foram dadas para serem transformadas: fazer com que as circunstâncias miseráveis de nossa vida se tornem coisas eternas ou em vias de eternidade."

Jorge Luís Borges

terça-feira, agosto 09, 2005

navalha

solitariamente, escrevo
como sei que devo
à luz dos olhos de Borges
a espada incandescente
do que, ruminante, penso
como um dístico do imenso
que a um só tempo sinto
esse estranho labirinto
feito de vida ordinária
essa copa duvidosa
a rosa seca do dia
que ao me abrigar, precária
repete a sentença
obriga-me à lembrança,
mineração involuntária,
febre doida de palavras
ouve vagas retumbantes
sobre o peito da muralha
essa súbita navalha
brota sem filosofia
carrega-me a razão fria
desferindo seu quebranto
um inominável canto
vindo da noite vazia.

o passeio

na breve brecha do mundo que tive hoje, em regalia,
um passeio, rala clareira na mata fechada de meu exílio,
revi aquela esquina onde brindamos água,
fogo sulfuroso da tarde âmbar em nossos pés pervagantes.

o botequim anônimo murmurava sob
a conversa parca de tão pouca gente, e
notei o lugar onde nos sentamos - oh,
onde o brilho tresandante e perfumoso
dos teus pêlos longos escorria serpenteando
suavemente, um convite à fome.

havia alguém ocupando aquele espaço
cunhado a venturas... mas não fazia tanta
diferença. ainda ruminava a duvidosa
crença do que possa ter havido entre
aquela tarde clara e tal penumbra noturna,
sorridente como um homem coxo.

esse agora resignado a quedar-se,
oblíquo, nos assentos últimos, para
colher com o olhar a saudade líquida
do mundo.

terça-feira, agosto 02, 2005

forasteiro

porque ando triste
ando sem saber se vale
cada palavra que eu cale
calada da noite escura.

porque ando triste
juras rolam nas valetas
esboroam-se nas retas
rasgam-se no rude asfalto.

porque ando triste
arrasto sombras quietas
dessas alturas incertas
onde mora o que revelo.

porque ando triste
vago em cidade estrangeira
sem ter olhos que me queiram
beira estrada, forasteiro.

porque ando triste
chego ao último destino
bem pra lá do desatino
feito poeta primeiro.

Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.