quarta-feira, dezembro 06, 2006

a sombra

esta a sombra que arrasto em meus pés
ou ela a mim? pondero sem susto.
empurrados os dois pelo sol em litania
ou pela luz fria dos postes noturnos,
a cidade espuma de tanta sombra!...
sangra este negrume tão lentamente
que não chego a pensá-lo – motor de um
outro inverno, cerne de volúpia quieta.

sombras inexistem de per si, são sobras
d´outros seres, inconcretudes espargidas
sobre o chão das coisas. verniz fugidio,
esta escuridão escorreita e servil...
de que me serve afinal? chama-me “mestre”
sem contudo dizer, segue-me às cegas,
num pleonasmo ingênuo, sua teimosia tão
discreta, embrionária.

recordo: em feto o teu manto me envolvia
em fervura sanguínea. sou teu filho, pois,
assombras-me desde o ventre, e hás de
engolir-me por fim, em mortalha de terra
água ou fogo. receio ter, inadvertidamente,
aberto teu jogo – de fato me espreitas,
empurras-me a cabeça noite após noite
em teu regaço estreito, na planura satisfeita
de treva sem remorso, no ócio da tua
liturgia, que parece não querer nada
além de refugiar-se aos becos, no
extremo diamétrico de toda luz, cuja
presença próxima aos objetos intumesce
a tua ossatura pânica e muda!

ei-la, imensada às expensas de argumentos parietais,
fantasmagórica sombra minha – minha?
ou sou teu severo percalço, se busco encandear-me
as instâncias, as latências, o substantivo lato?
sombrazinha, sozinha de fato, sempre
a reiterar-me a irrevogável dor íntima de existir,
que seja, então, assim, tal expediente teu, iconoclasta.
a mim, basta saber que hei de afogar-te, alhures,
na oceania fulgurosa de um sol de meio dia.

Quem sou eu

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Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.