terça-feira, novembro 06, 2007

quando a música terminar

há este lugar, obtuso como quase toda arquitetura, onde há vazio faminto por dizer-se. a sala objeta certezas continentes... apenas doa-se, dissoluta, ao que se queira fazer-se a habitá-la.

escolhemos o risco de não saber, abrindo livros como runas em língua morta – ou para além, transtornando o que era inteligível, o que orbitava em brilho de tese, nas profundezas guturais da pré-linguagem – o que já é linguagem, porquanto. viver seguiu-se como alimento e recurso empírico, mas a sala esturgia como uma vulva em cio, e passamos meses a movermo-nos, a suar, gritar, cantar, a exaurirmo-nos ao desfalecimento. a sala modificava-se, imbuía-se a arquitetura outrora fria dum sangue invisível, mas presente. a cama do chão fumegava sob o toque de nossos pés, mãos, corpos retorcendo-se na busca do soma, dilatação extra-cotidiana, matéria bruta pronta ao projeto de três pilares conceituais: Artaud, Nietzsche e Jim Morrison.

depois de algum tempo, decidimo-nos a encontrar nossas personas arquetípicas, e foi então que três imanências acederam aos nossos esforços, três entes xamânicos, cada qual sob um signo elemental: terra, ar e fogo. “e onde a água?” foi quando nos demos conta que essa água, a mesma de nossos suores, e do sangue invisível, a mesma que erguemos nas taças das pálpebras quando exaustos e feridos de morte – a doce e inevitável morte do ego nos processos criativos – a água é o ocaso do planeta, a incerteza última, a falta descriante. nos pareceu oportuna a sua quase ausência. “quase”, porque ela está lá, no parto de Gaia, pelas mãos das Áyamins, irrigando seu estertor ao dar à luz os xamãs gêmeos... está nos suores e vapores concentrados no Vôo Mágico e no Domínio do Fogo... e, finalmente, está lá, no fim, lavando os corpos egressos da jornada arquetípica.

“Quando a Música Terminar” – diz o nome do espetáculo – restarão apenas fantasmas, os ecos assombrosos da(s) voz(es) de Artaud, faca de duas pontas; a reverberação límpida e mântrica das melodias embebidas de poema de Jim Morrison – que a platéia tentará, inutilmente, reter em gargantas secas de medo – e o enredo final, onde Nietzsche, atônito ao perceber que os deuses dançantes eram um simulacro, constatará o erro monstruoso da existência sem música (água sonora). uma solidão instransponível e sem sentido.

Quem sou eu

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Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.