quarta-feira, fevereiro 29, 2012

Canto Cativo ou O Épico das Distâncias




I

Penso agora então: que quer dizer cativar?
Seria ter na mão o ouro baço,
a forja serena, a cantilena mágica
de deidades secretas?

Ou que seja a aventura cega dos poetas,
a urdidura ancestral profetizada na clausura?
Há sempre um novo engodo que medra na origem,
A vertigem da fundura suposta, o erário consumido a doces golpes conquistados.

Tornar-se cativo seria então uma revelação
De sims e nãos que concordam mudamente
Delicadamente cortejam-se, alheios a necessidades pragmáticas,
Apenas reviram-se na areia lúdica, como cães finalmente felizes.
O que somos, afinal? Conhecemo-nos o bastante
Para ousar querer saber o outro?
Saberíamo-nos o bastante sem a mediação do outro?

II

Agora sou a tarde equatorial,
intumescida de nuvens brancas e cinzentas,
Sou a úmida verdade nas árvores suburbanas,
a voz inventada naquele bolero abandonado de cais
O porto e suas direções feitas a ventos e água
E tu, minha pequena rosa branca,
assinas teu nome com a seiva alva do inverno
em pleno peito da primavera.

Tu, que até pouco tempo eras uma quimera desconhecida,
Um belo sonho cujo enredo se esquece ao primeiro bocejo da rotina,
Agora te tornas outra chuva sobre a florada estação das carícias,
Inquietas o corpo e o pensamento, apenas por existires, longínqua,
guardada na redoma daquele planetinha...

Minha vinha avassaladora, minha amora abocanhada pelo dia,
Minha marinha e meu cordel teso,
Meu peso e minha fome sem medida,
Minha comida e meu pasto febril,
Minha tarde branca, meu leite,
Meu deleite e minha letra branda,
És tu quem comanda o levante
De antes de fevereiro, aos estertores de abril.
És tu quem acorda o dia nas fotografias,
e nos lábios entreabertos expirando o voo,
E recortas, com teu perfil de Helena,
As alfazemas impolutas em meus olhos índios.

III


Te abençôo e evolvo ainda mais na direção desejada,
Coroando-te os ombros, os tapumes macios que envergas, os delitos eleitos,
Erguidos acima das vergonhas pudicícias,
Com minhas mãos em concha, deitando-te as pérolas do toque,
E revejo a malícia adolescente nas travessuras onde tresandamos os gemidos,
Onde volitamos serpenteando nos ouros de Klimt, nas mucosas de Schiele, nas rosas rasteiras de Monet, nos interstícios quase invisíveis de Seurat.

E tudo o que mais será já nos pertence,
Como pedras e galhos abandonados pertencem ao caminho,
Como o ninho donde se vai o pássaro ora silente, guardando seus saltos primeiros,
Como o vago forasteiro adivinha onde estão os que o alimentarão na cidade inédita,
E a coragem análoga é a de um beduíno curtido a sois infindos,
Cuja aventura seja a de obedecer o instinto dromedário,
E em si armazenar a água essencial da esperança,
Sabendo poder cruzar desertos sem sucumbir a loucura de miragens equívocas.

Tu, que provocas a paisagem com intentos quase secretos,
Que dispõe dos objetos como fossem fetos de idéias outras,
Como fossem sempre simbólicos
De uma possível infância preservada
Nas caixinhas de eternidade - as tuas meiguices douradas no privilégio de auroras.

IV


Agora eu te reconheço bem, dama dantes oculta,
Tua quixotesca sanha não me parecia estranha,
Tua tamanha sede justíssima e grave, o teu algarve íntimo,
A abadia voluntariamente anônima de tua escritura, ora evidente
Os teus dentes alarmantes, perfilados na concha úmida e rosácea da boca pequena,
As tuas melenas entrecortadas, menina,
Reinventadas por ti!...

Teu arado autônomo, o fenômeno irrepetível de teu croquis cinemático,
Assaz romântico o teu abandono
De tudo o que te prendia ao conforto
Da vida abastada e aristocrática.

Reconheço tua democrática visão do mundo
Através do olfato: a bússola pronunciada que trazes à face de tua obra,
Três palavras apenas, a pequena herança confeccionada
Para dirimir culpas prisioneiras,
Tuas estribeiras perdidas ao chá das cinco,
O afinco com que somas digressões pelo vasto continente
A registrar-lhe, aos goles da lágrima e da lâmina leniente da câmera cinética,
Sua estética vaga, quase um sortilégio presenteado,
E suas personagens desenhadas pela dramaturgia inclemente da própria vida.

V

Reconheço-te Perséfone e Pandora, paridas de teu próprio ventre,
És a mãe de ti mesma, e és tuas filhas, elencadas ao fragor
Do instante em que necessitas delas.
Podes ter a carranca aguerrida da amazona sanguinária,
E em seguida despir-te, lânguida, como Psique apaixonada,
Deitando aos pés de Eros as oferendas lúbricas e leves
De tua intimidade rara.

Tua vida, a arma que disparas, bravia
O estopim aceso, que ameaça a explosão
Também o rio que acelera na correnteza, irreprimível
E o vento, este que bate minhas portas e janelas,
E me arranca páginas das mãos.

As tuas duas gemas da visão, as jóias
Que emergiram escuras da clarabóia luminosa
daquelas primeiras imagens,
Esses teus olhos moços e sinceros
Entregam-se ao esmero de serem janelas veladas
Por cortinas diáfanas, entre o âmbar e o nácar,
E ousam pisar terrenos proibidos sem temer ferir-se
Com o mesmo ferro da neblina com que fui ferido.

Pois quero mesmo que esses olhos teus risquem-me o peito,
Feito facas em brasa, e que a asa
Do dilema finalmente se abra,
Dispersando em seu voo o negrume
Pelo lume da tarde em que estou.

VI

Observo, atento às tuas escolhas,
Pra onde sopram as folhas deste outono,
E embora o sono me vença de vez em quando,
Sei que ando vigiando pra além do próprio abandono,
Além de Cronos e Hélios, o esforço
insano em manter-me acordado dentre as divagações oníricas.

Meu lirismo tem-se portado como um bicho selvagem,
De súbito à solta na paisagem urbana,
Desordena os transeuntes, arreganhado nas praças e coletivos
Com a lassidão típica dos amantes fortuitos, o uivo dos bugres cativos,
Meu lirismo ecoa na garoa insistente da baía,
E se esvai na valsa intermitente desses dias, na contagem regressiva
Do encontro aguardado por nós,
E guardado nas letras de Cícero, nas bravatas de Whitman, na paixão de Hilst.

O emblema mudo que traremos nos corpos, depois,
Quando fragatas cruzarem os mares de nós dois, e souberem
Que há pétalas caindo ao léu, no tombadilho deserto,
E que os homens enlouqueceram, e querem fugir
lançando-se aos krakens e serpentes marinhas,
Fulminados pelo sentimento pueril da entrega sem reservas,
Isso antes mesmo de emergirem sereias com seus assassínios vocais,
Eles já precipitados na direção de Atlântida, as guelras pululando das carótidas,

E a sorte será um cais donde volvam talvez a salvo,
Quem sabe a nado, ou a boiarem, roídos de algas e medusas,
As mentes confusas entre o que foi, e o que nao é
Contudo, finalmente pacificados pela coragem maruja.


VII

Esta seja a garatuja da hipótese inscrita
Naquilo que grita evidente em tais sinais que reconhecemos desde o início,
Do fio de sangue no pulso, ao ano de nascimento das caixas de palavra,
Tudo o que já confirmava causava o susto do estranhamento,
Em ganhar de graça o alento do que parece ser raro,
"pois pode um caminho se abrir assim tão claro?".

Redobro a atenção, e preparo um navio lento,
um atavio irresistível, retomo o fio da meada,
Renovo a moeda de troca com a vida, restauro o tesouro verdadeiro
Estar inteiro e pronto ao que se apresenta imprescindível,
Fazendo do possível um intuito e um espanto.

Meu canto a ti se esparge largo, ao infinito,
Resfolegando, lúcido e vivo, pelas balaustradas e platibandas,
Avança pelas varandas interioranas da infância cristalizada,
E move-se a galope na seara sertaneja.


VIII

Tudo quanto veja doravante
Com os olhos recém despertos de um torpor de eras
Converge agora para uma estrela supernova,
A prova cósmica de que preexistíamos ao choque dos meteoritos,
E que mesmo os ritos imemoriais de nossos ancestrais nativos
Já contavam os mitos incréus desses céus impensáveis,
Donde surgíamos a cavalgar corcéis de fogo, as mãos crispadas de raios,
E os vassalos nossos eram semideuses de culturas diversas,
Cada um com sua oferenda específica,
E a fúria do que sentíamos só se satisfazia no sacrifício brando
De ramalhetes sangrados à beira do mar,
De festas e danças que varavam semanas insones, aos goles da alegria,
De crianças gretadas de cataventos e risadas que surgiam,
Brotadas de ventres de madrugadas,
E ainda de novas histórias inventadas pelas mentes entorpecidas
Dos viajantes e dos camponeses, do povo entregue a algaravia histriônica do Carnaval -
A carne do temporal, o sangue da maresia, os ossos da utopia,
a brecha do fatal.


IX

Trafego agora, trôpego, entre nuvens de cá e lá,
Calado, sem querer perturbar os anjos que dormem a sesta,
Nesta tarde de sábado, ouço rumores de serestas e saraus vindouros -
Ou seriam os anteriores, quarados na lembrança feito lençóis de avós?
Ouço argumentos em delírio, "é Carnaval!... é São João!..." os fogos a pipocar seus estampidos moleques,
Os bricabraques pelas praças, lançando velhos almanaques do séc XIX,
Salamaleques de saltimbancos irrompem brincalhões em meu peito ansioso.

Ouço gozos, ouço gemidos ungidos com o óleo divino do desalinho sincero,
Ouço boleros, sambas e marcha-ranchos, ouço o tropel mais ancho
De uma cavalhada no horizonte belo,
Ouço o desmantelo de cárceres e grilhões, ouço as vozes de multidões de outros seres invisíveis, e ouço ainda
A tua voz, nítida, vencendo a turba febril
Com delicadeza de fêmea e filha, de mulher e marulho, com firmeza de mergulho aprumado
Até o fundo perau dessas vaus invictas,
Convictas de seu patamar inalcançado.

Ouço a ti, via láctea, pó de estrela, ouço a ti e a mais ninguém nesse momento,
Ouço a centelha da vela solitária,
Ouço a ária composta, e nunca executada,
Ouço a fada, a sílfide, a Hécuba, o Ágape
Ouço e não duvido, porque o olvido destarte inopera,
E a fera indizível,  já cantada, orbita agora num'outra esfera,
Feita de um sonho puro, um ouro claro, um desmascaro além do muro
Que te nubla a visão do futuro.


X

Eis as fontes, viajante... De qual água beberás?
Eis os montes de cá, contrastando com tuas planícies do norte...
De que morte morrerás?
Eis a plêiade, extinta a milênios, seus fulgores a viajarem o universo até os teus olhos... Em que brilhos crerás?
Eis a estrada, e suas muitas bifurcações, esse jardim de Borges...
Em que alforje trarás a bússola?
E se enlouquece a rosa dos ventos, neste intento que te assola... Em que mola terás o impulso do salto?
E se empalidecesses de medo, e lhe paralisassem as veias, em que veios extrairias a substância dos significados?

XI

Bem compreendido, o sentido será um jorro multiplicador de sempre variada semântica,
Arrancando ao cotidiano prosaico o seu mais farto ensejo,
é assim então que desejo esse encontro marcado, essa épica jornada entre dois seres que vencem distâncias,
Essas as mais diversas e possíveis quanto se as metaforize,
Quero e acredito nessa beleza, mas não cegamente,
Antes vidente, visionário, adivinho e taumaturgo,
Pois sei haver uma curva donde não se vê adiante,
Mas na qual se crê, naturalmente, porque o caminho serpenteia,
Corcoveia íngreme, ladino feito o próprio destino,
E que nos surpreende meninos, sem temor de floresta e trilhas,
Abrindo picadas, aprendendo os nomes dos bichos e plantas,
Assobiando a fala de passarinhos,
Resguardando nos olhos tantas maravilhas.

XII

Estes somos nós, menina, prestes ao desvelo,

À beira do abandono são de um no outro,
Nós, a empunhar uma vez mais o libelo do amor
De encontro a frieza mouca do mundo,
Nós, no fundo reino guardado, na dobra do abraço,
no traço da origem,  na margem do rio vivo,
Eu e tu, fincados no restolho da paisagem,
Dados à viagem repentina de corvos nas plantações de milho,
De garças ao desmaio da tarde, alarde inconsútil, ensaio de brisas.

Sabe-se onde pisa quando o chão nos responde com firmeza,
E onde a beleza nos alerta com a seta da surpresa
Apontada para a meta prevista,
A provável ametista de uma joia semeada.

sexta-feira, fevereiro 17, 2012

domingo, fevereiro 12, 2012

Areia




(1993)



A menina sorriu, retorcendo os olhos. Caminhou sobre os cacos de vidro, a pensar no topo dos edifícios imensos.
Viu o céu se movendo sem pressa, no compasso das nuvens & do vento. Alguns grãos de areia caíram nos seus olhos e na boca, e ela mastigou-os, sentindo a vertigem no horizonte trêmulo & flamejante. 
E não ouvia mais os abutres gargalhando concentricamente ao redor de sua cabeça, como uma auréola negra coroando um anjo das trevas.
Fechava os olhos, vagueando com os grãos na retina, num sonho arenoso e sem fantasmas, quando caiu numa espécie de oásis imaginário, tendo orgasmos pueris nas asas dos deuses de brinquedo.

(2012)


A menina perdeu o medo. Diante do abismo circundante, ela pensa que, como antes, os edifícios nunca arranham o céu realmente.


Viu o chão sem mover-se, sem pressa, atravessando as miragens & ausências. Alguns grãos de areia feriram-lhe os olhos e a boca, e

 ela aceitou-os, seguindo as direções apontadas no horizonte cego & radiante. 
E não houve a mágoa de rapina, ou o escárnio predador, nem armadilha dúbia que a coroasse com os espinhos revoltosos da complacência

 de si mesma.
Abria os olhos, vagas lacrimosas lutavam na tempestade, na vigília assombrosa e sem fantasmas, quando se ergueu numa espécie de ária 

imaginada, tendo orgasmos sutis nos braços de ouro do desejo.

Quem sou eu

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Renato Torres (Belém-Pa. 02/05/1972) - Cantor, compositor, poeta, instrumentista, arranjador, diretor e produtor musical. Formou diversas bandas, entre elas a Clepsidra. Já trabalhou com diversos artistas paraenses em palco e estúdio. Cria trilhas sonoras para teatro e cinema. Tem poemas publicados nas coletâneas Verbos Caninos (2006), Antologia Cromos vol. 1 (2008), revista Pitomba (2012), Antologia Poesia do Brasil vol. 15 e 17 (Grafite, 2012), Antologia Eco Poético (ICEN, 2014), O Amor no Terceiro Milênio (Anome Livros, 2015), Metacantos (Literacidade, 2016) e antologia Jaçanã: poética sobre as águas (Pará.grafo, 2019). Escreve o blog A Página Branca (http://apaginabranca.blogspot.com/). Em 2014 faz sua estreia em livro, Perifeérico (Verve, 2014), e em 2019 lança o álbum solo Vida é Sonho, autoproduzido no Guamundo Home Studio, seu estúdio caseiro de gravação e produção musical, onde passa a trabalhar com uma nova leva de artistas da cidade.